sábado, 14 de outubro de 2017

Música eletrônica: origens

Strictu sensu, segundo alguns pesquisadores e historiadores - dentre eles David Ernst em seu livro “The Evolution of Electronic Music”, e Paul Griffiths em “A Guide to Electronic Music” -, a música eletrônica surge em meados do século XX, com o advento da musique concrète e da elektronische musik; lato sensu, segundo, também, alguns pesquisadores e historiadores, há 120 anos (neste último caso, o sítio http://120years.net/ aponta para esta perspectiva, basicamente, sobretudo pelo fato de relacionar o surgimento da música eletrônica às pesquisas acerca da eletricidade e da criação de aparelhos eletro-eletrônicos ao longo dos séculos XIX e XX). David Ernst lista, a partir da página xxxvii da obra supra-citada, uma trajetória cronológica dos eventos pré-1948 reladionados à música eletrônica, identificando como o primeiro desses eventos a “Odisséia”, de Homero (Grécia Antiga). O autor destaca a definição de “música natural”, entoada pelas sereias e mencionada pelo autor grego, e definida como tal por Regino de Prüm, teórico da música do século X. Na mitologia grega, as “Sirenas” (singular grego: Σειρήν Seirēn; plural grego: Σειρνες Seirēnes) eram criaturas perigosas, que atraíam marinheiros próximos com sua música e vozes encantadoras para naufragar na costa rochosa de sua ilha. Por se considerar historicamente a Grécia como o berço da cultura ocidental, e ao estabelecer em sua lista a obra de Homero como o primeiro evento relacionado ao surgimento da música eletrônica, David Ernst assim se justifica: “Like others artistic developments electronic music has resulted from a number of transformation within diferent areas of a single tradition. Music Theory, composition na instrument desig stem from mathematical and physical laws, beginning with ancient Grece, and they can be traced throughout the history of Western music.” ("Como em outros desenvolvimentos artísticos, a música eletrônica resultou de uma série de transformações em diferentes áreas de uma única tradição. Teoria da música, composição, construção de instrumentos fundamentam-se em leis matemáticas e físicas, começando pela antiga Grécia, e podem ser identificadas ao longo da história da música ocidental").


Esta última afirmação de Ernst, no meu entender, é extremamente significativa, pois não sectariza os temas relacionados ao surgimento da música eletrônica entre teoria e prática: o gênero musical “música eletrônica” inclui tanto contribuições teóricas (racionais, no sentido do pensamento abstrato cartesiano), quanto contribuições empíricas e experimentais. Ambos se fundamentam, segundo o autor, “em leis matemáticas e físicas”, ou seja, em um pensamento abstrato, matemático, e à matemática aplicada (à Física). (NOTA: A mestranda Lícia de Souza Leão Maia – UFPEE, em sua monografia “Matemática concreta x matemática abstrata: mito ou realidade?” (http://www.ufrrj.br/emanped/paginas/conteudo_producoes/docs_23/matematica_concreta.pdf), inicia seu texto com a seguinte sentença ao indagar sobre a “natureza” da ciência matemática: “A questão que propomos discutir neste trabalho é a relação entre duas dimensões da matemática: a abstrata e a concreta. Na realidade, gostaríamos de partir do próprio questionamento sobre a existência de dois tipos de matemática. Será que há sentido em falar em uma matemática concreta quando, na sua essência, a ciência matemática é um construto mental, no sentido dado por Piaget à Ação do Homem sobre o mundo?”. 

A Utopia do(s) Sentidos(s)

II Encontro de-Composição Sonora de Juiz de Fora
(Ocorrido dia 17.09.2014, Liberdade Livraria, MG, Brasil)
A Utopia do(s) Sentidos(s)
Paulo Motta, set. 2014




O termo “música experimental” provavelmente não mais agregue o sentido de um gênero musical específico (ou talvez jamais o tenha feito...). Em recente entrevista, a compositora Jocy de Oliveira afirma o seguinte, ao se questionar se “a música experimental ainda existe?”: “Creio que não. O que existe é um somatório de pesquisas musicais, muitas quase anônimas, que refletirão nossos dias e o artista de hoje, como a última utopia da criação.”
No entanto, se a “música experimental”, de fato, não mais existe, permanece a possibilidade de que ela “aconteça” fugazmente no que poderíamos denominar como “experimentação sonora”, na qual a própria inteligibilidade dos sons – se constatamos e/admitimos que esta inteligibilidade é intrínseca aos próprios sons em suas unidades físico-acústicas mínimas (sejam elas acústicas ou eletrônicas) – “apareça”, seja perceptível, no momento mesmo em que são produzidos. Mas, neste caso, a percepção desta “inteligibilidade sonora” solicitaria do ouvinte um “ouvir ativo”, “[sugerindo] a circunscrição da escuta dentro de certos limites razoavelmente amplos nos quais o ouvinte atua. [Ou seja], a estrutura da obra não determina (no sentido de causalidade) como é executada a música. Tão pouco determina e muito menos se identifica com o[s] sentido[s] da música. É o contrário! É o ouvinte quem, buscando compreender a obra, intentando dar sentido ao que escuta, determina quais são as unidades mínimas para que possa fazê-la inteligível segundo certos atos de escuta. Tecnicamente falando, as unidades mínimas são constructos mentais ad hoc, realizados para cada experiência musical específica.” (Edson Zampronha)
Mas se os sons possuem, eles mesmos, suas unidades físico-acústicas mínimas (como os harmônicos, por exemplo), como o ouvinte determinaria, na escuta, quais seriam as unidades mínimas para que, eventualmente, operasse uma escuta ativa visando à construção de sentido(s) e significado(s)?
Não obstante a aproximação perceptiva entre a inteligibilidade intrínseca do fato sonoro – do som como matéria sonora – e da inteligibilidade das unidades mínimas como constructos mentais se efetivarem preponderantemente na percepção estética “segundo certos hábitos de escuta”, uma construção de sentido(s) e significado(s) relativamente singular e existencialmente autônoma seria possível pela intencionalidade da escuta – a escuta ativa, propriamente dita: ao considerar perceptiva e existencialmente o som como um fenômeno transiente (que “acontece enquanto dura”), o ouvinte reconheceria, na temporalidade dinâmica de uma performance, o seu próprio momento existencial, único e intransferível, porém identificável no fluxo temporal das sonoridades percebidas: a experiência estética operando, a cada escuta, a reelaboração de sentidos e significados musicais e existenciais.
Os protagonistas da série de eventos sonoros que integram os Encontros... colocam a si mesmos e aos ouvintes o desafio da experienciação do paradoxismo complementar entre o sensível e o inteligível, entre a matéria sonora e seus possíveis significados musicais, entre existência e tempo... Como possibilidade da construção permanentemente re-elaborada dos sentidos musicais (e, ambiciosamente, também dos existenciais...), a partir de uma escuta ativo-intencional – mesmo que esta escuta esteja circunstancialmente impregnada de anterioridades auditivas e existenciais: utopia perceptiva do fato sonoro em seu “instante eficiente”.
– Em que sentido(s) a música experimental talvez ainda exista?
– Em todos os sentidos! (audição, visão, tato, paladar, olfato...)

sexta-feira, 16 de julho de 2010


CONCLUSÃO

E agora estou perdido!
Devo parar?
- Não, se páras, estás perdido.
Goethe, in "Poemas"

Even Jeovah,
After Moses had got the Commandments
Committed to stone
Probably thought:
"I always forget the things
I really intend to say".
Christopher Morley

Procurou-se, ao longo deste trabalho, demonstrar como a interpretação teórico-prática das várias contribuições dadas ao desenvolvimento da linguagem musical, à sua notação e aos processos de execução, expressão e audição musicais, - tanto por músicos e compositores quanto por intérpretes, assim como por pesquisadores e cientistas, e até mesmo pelo público ouvinte -, delegaram à estética composicional da Música Erudita Contemporânea desafios relacionados à percepção, expressão e conceitualização dos processos que envolvem a experienciação da música em todos os seus aspectos.
Destacou-se a música serial weberiana como sendo a proposta de organização sonoro-musical que possibilitou o advento do que se considerou aqui ser umas das maiores transformações em toda a História da Música ocidental; ou seja, a utilização de recursos eletrônicos na composição de uma categoria musical que, não obstante ser devedora do desenvolvimento histórico de toda a música ocidental que a antecedeu, inaugura inéditos procedimentos composicionais, interpretativos e de percepção do fato sonoro, que simultaneamente rompem com o passado e dão continuidade aos modelos composicionais anteriores, suplementando-os.
Uma das principais da Música Eletrônica à música ocidental, talvez tenha sido o fato de colocar em questão a própria natureza do material sonoro utilizado pelos compositores na elaboração de suas obras; ou seja, a natureza do próprio som, o qual, após ser analisado em seus constituintes fundamentais, revelou propriedades antes insuspeitadas e desconhecidas: a "matéria" sonora, assim compreendida, passou a representar muito mais do que um simples componente estrutural da partitura, para ser agora forjada a partir do conhecimento teórico-empírico de sua própria natureza intrínseca.
Em decorrência desse conhecimento os músicos se aperceberam que o som, em última instância, era o catalisador de um antagonismo que, posteriormente, veio a ser um dos principais estímulos para a produção musical contemporânea, a saber, o antagonismo entre acaso e determinismo dos complexos sonoros engendrados pelas vibrações freqüenciais (sons) que constituem o fato musical, antagonismo esse que passou a condicionar todos os aspectos que envolvem a composição, interpretação e audição musicais.
Para aqueles compositores que se propuseram a transformar e a fazer desenvolver a linguagem musical a partir da aplicação desses dois elementos (que passam a ser simultaneamente incorporados na estruturação das partituras), a síntese, a análise e o reprocessamento dos sons, a amplificação de instrumentos acústicos - dentre outros recursos - implicaram em procedimentos composicionais, interpretativos e perceptivos diversos daqueles praticados na música erudita tradicional. Conseqüentemente, o condicionamento estrutural da obra passou a ter características muito singulares, podendo sugerir inclusive, como se viu, a participação criativa do intérprete, recurso amplamente utilizado na execução da Música Eletrônica Viva.
Muito embora essa forma de tratamento do variado material sonoro disponível ao compositor não fosse de exclusividade dos sons eletroacústicos, o seu uso passou a ser mais freqüente e sistemático a partir da evolução tecnológica dos instrumentos musicais, ampliando os recursos destinados à sua criação e conseqüente manipulação. Desta forma, os músicos se viram diante de um vasto universo sonoro e musical em permanente expansão. Porém, paralelamente, depararam-se com novos e grandes desafios extremamente estimulantes.
A precisão e dinamização da composição e execução musicais desenvolvidas em função do uso de gravadores, geradores de freqüência, sintetizadores, computadores, dentre outros aparelhos, levou alguns compositores a escreverem peças onde faziam uso exclusivo dessas máquinas, eliminando completamente o elemento humano em suas execuções. Em contrapartida, criaram-se partituras onde o compositor colocava à disposição do(s) intérprete(s) estruturas musicais que apenas sugeriam, em linhas gerais, as suas intenções, abrindo possibilidades não apenas interpretativas mas também de interferências nas indicações apresentadas na partitura, o que veio a ser denominado posteriormente por "Música Aleatória" - um "objeto" artístico-musical que radicalizava a noção de "obra aberta". 85
Essa denominação - obra aberta - evidencia nas composições características muito particulares, diferenciando-as do conceito de "improvisação", pois que encontram-se em seu conteúdo indicações e estruturas sígnicas e simbólicas (musicais ou não) que direcionam a sua concepção e interpretação, fazendo com que o intérprete cumpra, em princípio, algumas obrigações.
No que concerne à criação de novos recursos eletrônicos, tornou-se relativamente fácil criar (inventar) novos sons - o que se apresentou dificultoso e problemático nos primeiros momentos da composição eletroacústica, foi fazer com que esses novos sons fossem a expressão de um pensamento musical novo e coerente: quando se pretende conhecer e apreender em sua totalidade um pensamento musical novo, sobretudo aquele que deseja manifestar-se por intermédio de novos recursos que integrem uma organização estrutural adequada, torna-se imprescindível o conhecimento do repertório de música tradicional. 86
Ao privilegiarem a apresentação da Música Eletrônica em tempo real, os compositores parecem ter solucionado grande parte desta problemática mas, como a arte musical consiste em ser um processo artístico extremamente dinâmico - principalmente quando se trata da arte musical do século XX -, novos e estimulantes desafios vêm surgindo no âmbito da produção musical, desafios esses que, por sua vez, orientam a música em direção a um futuro no qual, muito provavelmente, as condições do fato musical continuarão a se transformar constantemente, em um ritmo cada vez mais vertiginoso
Pierre Boulez demonstra ter uma visão extremamente lúcida a esse respeito:
Nossa época é uma época de indagação permanente, incansável, quase insuportável. Em sua exaltação, ela não respeita refúgios nem santuários; a sua paixão é contagiante, sua sede de desconhecido nos projeta poderosamente, violentamente para o futuro. [...] Apesar das artimanhas com que tentamos desesperadamente fazer o passado servir às nossas necessidades atuais, já não podemos nos esquivar ao teste essencial: o de nos tornarmos absolutamente presentes, abdicando de toda memória para forjar uma percepção sem precedentes, renunciando às heranças do passado para descobrir territórios sequer sonhados ainda. 87
Esses "territórios" citados pelos músico francês, assim como os novos caminhos que a música poderá trilhar, talvez venham a receber contribuições de disciplinas e áreas do conhecimento humano que - como se viu no caso da física quântica e da tradição místico-espiritual do Oriente -, apenas do ponto de vista de uma apreciação superficial, demonstram não conter elementos passíveis de serem integrados ao âmbito da estética musical.
Um exemplo dessa aproximação de disciplinas e áreas do conhecimento humano (aparentemente) extramusicais, é desenvolvida pelo autor do presente hipertexto, na qual procurou-se traçar um paralelo entre a estética composicional da Música Erudita Contemporânea e a cartografia, uma pesquisa que, sendo denominada em seu conjunto de "Música Cartográfica", procura integrar na estruturação composicional das partituras, perfis topográficos elaborados a partir de curvas de nível de mapas geográficos e de observações de campo, onde contornos de relevos rurais (elevações e planícies) e urbanos (construções citadinas) são graficamente reproduzidos, possibilitando um tratamento aleatório e/ou determinístico de timbres acústicos e eletroacústicos, além de procedimentos composicionais e interpretativos determinados e/ou determinados.
Mas quando se aproxima elementos da ciência geográfica à composição musical, remonta-se a uma característica extremamente significativa que se sobressai na Música Erudita Contemporânea: devido aos aparelhos de rádio receptores de ondas curtas e ao grande número de gravações fonográficas, praticamente toda a música existente no planeta, das tradicionais às experimentais, encontra-se acessível à maioria das pessoas do mundo ocidental industrializado; o que nos faz conjecturar que através do conhecimento da música de outras culturas, talvez se possa encontrar em nós mesmos os seres humanos de outros tempos e lugares. Esta possibilidade implicaria no fato de que não mais habitamos uma "aldeia global" (citando uma expressão do sociólogo canadense Marshal Macluhan), mas sim que o mundo habita cada um de nós. 88
Assim, os compositores que, na atualidade, se propuserem a realizar um trabalho musical tão representativo quanto ma música serial weberiana ou a Música Eletrônica, necessariamente deverão considerar essa multiplicidade de experiências na produção de suas obras.
Por outro lado, a constatação da existência de um amplo panorama musical contemporâneo e de experiências extramusicais que influenciam a composição, instigaria esses mesmos compositores à unificação perceptiva - e não a uniformização - (prática e teórica) dos vários estilos e tendências da música do passado, bem como da música produzida na atualidade.
O comentário de Adorno acerca da música serial, no qual afirma a necessidade de se unificar aspectos musicais divergentes, pode ser interpretado em relação ao que se poderia denominar de "música de todo o mundo":
O esforço necessário para captar a nova música não é um esforço do saber abstrato, nem algo como o conhecimento de quaisquer sistemas, teoremas ou até mesmo de processos matemáticos. É essencialmente fantasia: aquilo que Kierkegaard chamava de ouvido especulativo. Protótipo de genuína experiência com a nova música é a capacidade de ouvir conjuntamente o divergente, fundando, no acompanhamento intrínseco do que que de fato é múltiplo, uma unidade. 89
A unidade perceptiva proporcionada pela "música de todo o mundo" - uma possível tendência estética da produção musical contemporânea - poderia vir a ser um instrumento de contestação da supremacia do sistema musical do Ocidente sobre as demais tradições musicais do planeta, assim como um porta voz estético dos conflitos sócio-culturais de nossa época: os que consideram a Música Erudita Contemporânea uma manifestação inexpressiva e carente de sentido estético, parecem ignorar essa possibilidade e desconhecer o fato de que a mesma seja conseqüência direta das contribuições ao desenvolvimento de sua linguagem; e que, talvez, estejamos presenciando um dos momentos mais ricos e férteis de toda a história da música, exatamente pelo fato da produção musical apresentar-se multifacetada em várias tendências e propostas estéticas. E para aqueles que vêem na Música Erudita Contemporânea um momento de crise e carência de sentido estético e expressivo, talvez não estejam cientes de que a arte - e sobretudo a arte musical - em todas as épocas e períodos da história da humanidade, expressa contextualmente o momento ideal civilizatório no qual foi produzida.
Conseqüentemente, os que identificam nessa suposta crise a falência da música ou da arte musical, demonstram desconhecer o fato de que essa última se constitui pelo desenrolar de um desenvolvimento contínuo - mesmo que se identifique nele momentos de descontinuidade - e construtivo - mesmo havendo rupturas estético-morfológicas) de novas descobertas: a produção da música erudita no futuro muito provavelmente não será idêntica à realizada nos dias atuais (por mais "extravagantes" e "audaciosas" que sejam as propostas dos compositores contemporâneos), mas certamente será produzida a partir das contribuições estéticas dadas por eles. Sendo assim, há grandes possibilidades de que por muito tempo ainda se faça algo que possamos denominar pelo termo "música"; 90 ou seja, uma manifestação artística que simultaneamente rompa e dê continuidade e prosseguimento àquilo que na contemporaneidade consideramos como sendo a linguagem musical que,, tendo sofrido incontáveis alterações em suas formas de expressão e estruturação, não se verá ameaçada de desaparecer por passar por novas transformações ainda mais radicais do que as que já sofreu, assim como por participar de um mundo que igualmente se transforma constantemente em todos os seus aspectos.

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NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

85 Ver ECO, 1991.
86 BERIO, s.d., p. 111.
87 Pierre Boulez cit. por Paul GRIFFITHS, 1986, p. 201-2.
88 GRIFFITHS, 1979, p. 94.
89 ADORNO, 1986, p. 160.
90 ECO, s.d., p. 126.


5.3 MÚSICA ALEATÓRIA E MÚSICA ELETRÔNICA VIVA (OU MÚSICA ELETROACÚSTICA EM TEMPO REAL)

5.3.1 O acaso e o determinismo na Música Eletrônica Viva e na Música Aleatória por influência da física quântica e da mística oriental
5.3.1.1 Física quântica e mística oriental
5.3.1.2 O repertório
5.3.1.3 Os paralelos entre a Física quântica, o misticismo oriental e a Música Eletrônica Viva

Os concertos de Música Eletrônica "Pura" e de Musique Concrète haviam se tornado enfadonhos pelo fato de incluírem na execução de seu repertório apenas gravadores, amplificadores e auto-falantes - ou seja, a aparelhagem eletrônica necessária à reprodução dos sons -, excluindo-se a participação de intérpretes.
Além disso, a sonoridades, muito embora fossem extremamente complexas e inusitadas, careciam das sutilezas e nuances dos sons instrumentais, fato este que leva os compositores a proporem a execução ao vivo de equipamentos musicais eletrônicos, associados a sons instrumentais e concretos.
As sonoridades pré-gravadas em fita magnética passaram a ser associados a sons eletrônicos - produzidos no momento da execução - e a instrumentos acústicos, cujas sonoridades e vibrações eram captadas por microfones e transformadas por aparelhos eletrônicos. Dessa forma, passou-se a empregar, em um mesmo e único evento musical, todas as contribuições dadas à Música advindas da utilização de recursos eletrônicos.
Muito significativamente, as sonoridades pré-gravadas eram metodicamente fixadas em fita magnética, e obedeciam aos procedimentos composicionais da música eletrônica pura e da musique Concrète. Ao passo que a produção em tempo real de sons eletrônicos e acústicos - que "dialogavam" com os sons previamente gravados - eram notados na partitura de forma a dar ao executante amplas possibilidades de participação criativa na interpretação da obra. Além disso, a notação musical solicitava dos músicos (envolvidos na execução e interpretação musicais) a reagirem reciprocamente em relação uns aos outros, e a apresentarem variações sobre o que haviam ouvido do material sonoro apresentado pelos demais músicos. Desta forma, a espontaneidade dos intérpretes, sendo solicitada pelo compositor na estrutura mesma das partituras, possibilitava ainda mais a inclusão do acaso na execução musical, além de contrapor às sonoridades pré-gravadas as flexibilidades e as sutilezas de um discurso musical que privilegiava as singularidades do momento em detrimento das singularidades do permanente. Ou seja, uma reação à fixidez das sonoridades pré-gravadas, caracteristicamente determinísticas e imutáveis.
Assim, tanto o acaso quanto o determinismo da notação e execução musicais passam a ocupar um contexto sonoro que é capaz de integrá-los em um discurso musical que muito adequadamente "harmoniza" os antagonismos existentes entre essas duas instâncias (ou procedimentos musicais) sem, no entanto, fazer com que percam suas características individuais (mesmo que num primeiro momento tenha prevalecido as singularidades do "aqui e agora").
Devido ao uso simultâneo de instrumentos convencionais e eletrônicos, além de meios electracústicos de amplificação e modificação de sons, a Música Eletrônica passa a incorporar definitiva e satisfatoriamente a aleatoriedade, sendo que talvez uma das principais contribuições desta última, consista no fato de propiciar à manipulação do material sonoro eletrônico maiores possibilidades de se incorporar à sua estrutura as características dos sons instrumentais (acústicos), material eletrônico esse no qual as freqüências sonoras - num primeiro momento de sua realização - não eram sintetizadas e expressas esteticamente de forma eficiente e satisfatória. Esse material é redimensionado apenas quando aliados às sonoridades acústicas que, por sua vez, ganham novos atributos ao se colocarem ao lado dos sons eletrônicos propriamente ditos. Segundo Stockhausen, "parece-me agora inteiramente aberto o caminho para um maior desenvolvimento da música instrumental, pois suas qualidades insubstituíveis - e acima de tudo sua constante versatilidade, seu caráter 'vivo' - já podem ser combinadas à conquistas da Música Eletrônica para constituir uma nova unidade." 56
Portanto essa "nova unidade" citada pelo compositor refere-se especificamente à aproximação e o uso comum de sonoridades eletrônicas e acústica. Contudo, pode-se também considerá-la como sendo a unificação convergente de procedimentos aleatórios às propostas de notação musical e atuação dos intérpretes, assim como daqueles aos elementos determinísticos que constituem a Música Eletrônica apresentada em tempo real.
Por outro lado, o indeterminismo e o acaso participam incondicionalmente da micro-estrutura dos sons, sejam eles acústicos ou eletrônicos. Ou seja, os compositores de música eletrônica "pura", ao analisarem as particularidades dos sons, se apercebem que, muito embora as freqüências sonoras possam ser sintetizadas e registradas definitivamente por intermédio de recursos eletrônicos, o controle de seus componentes fundamentais - ao participarem da estruturação de agregados sonoros complexos - jamais poderiam ser fixados em todos os seus aspectos constituintes: o acaso é reconhecido como sendo um componente intrínseco e substancial da própria matéria sonora.57
Tal constatação levou os músicos a fazerem um amplo uso de procedimentos musicais que incorporavam o acaso e a aleatoriedade, tanto na notação quanto na interpretação musical. Muito significativamente, tais procedimentos encontram justificativas não só a partir do estudo da própria natureza do som, mas também nas pesquisas acerca da matéria desenvolvidas pela física das partículas, ou Física Quântica.
Como se verá mais adiante, a ciência física, não obstante ser uma disciplina extramusical, dará contribuições fundamentais para o desenvolvimento da Música Aleatória, sobretudo por afirmar a presença de eventos imprevisíveis no mundo subatômico; ou seja, o fato de que "[...] o fundamento mesmo da realidade é um labirinto móvel e indeterminado de probabilidades." 58
Uma outra contribuição ao desenvolvimento dos processos aleatórios na música ocidental é dada pela inclusão da filosofia e do misticismo orientais, os quais influenciam notadamente os procedimentos composicionais, as propostas de percepção e audição musicais, assim como a atuação dos músicos na interpretação das obras.
As contribuições específicas dessas áreas ocorrem em simultaneidade, pois entre ambas pode-se identificar paralelos e identidades conceituais, muito embora o objeto de estudo da Física Quântica seja diverso do objeto de estudo do místico - o mundo exterior e o mundo interior, respectivamente.
Os físicos Niels Bohr e Julius Robert Oppenheimer vêem assim a proximidade entre a Física Quântica e a mística oriental:
Se buscamos um paralelo para a lição da teoria quântica [...] [devemos nos voltar] para aqueles tipos de problemas epistemológicos com os quais já se defrontaram, no passado, pensadores como Buda e Lao-Tsé em sua tentativa de harmonizar nossa posição como espectadores e atores no grande drama da existência. 59
As noções gerais acerca da compreensão humana [...], ilustradas pelas descobertas da Física atômica, estão longe de constituir algo de inteiramente desconhecido, inédito, novo. Essas noções possuem uma história em nossa própria cultura, desfrutando de uma posição mais destacada e central no pensamento budista e hindu. Aquilo com o que nos depararemos não passa de uma exemplificação, de um encorajamento, e de um refinamento da velha sabedoria. 60
Em função dessa convergência entre ciência e mística oriental, passar-se-á, a seguir, a descrever a Música Aleatória e a Música Eletrônica Viva, evidenciando-se as influências que ambas - ciência e mística oriental - exerceram (e exercem, talvez com menos preponderância) no aprofundamento do paradoxismo entre acaso e determinismo na estética composicional da Música Erudita Contemporânea.


5.3.1 O acaso e o determinismo na Música Eletrônica Viva e na Música Aleatória por influência da física quântica e da mística oriental

A Música Aleatória surge em 1951, com uma significativa proximidade ao apogeu da Elektronische Musik e do serialismo integral, sendo que duas obras, Music of Changes e Imaginary Landscape No. 4, ambas compostas pelo músico americano John Cage (1912-1992), constituem as primeiras partituras nas quais os procedimentos aleatórios, tanto composicionais quanto interpretativos, são empregados de forma mais significativa, antecipando a efetivação do acaso na música ocidental em, no mínimo, uma década.
Além das intenções do compositor em relação à representação sígnica e simbólica dos sons na partitura - cuja escrita é indeterminada e acausal -, as composições aleatórias colocam em questão a própria percepção do material sonoro-musical por parte do ouvinte. Jean Molino nos diz a respeito:
[...] Nada garante que haja correspondência direta entre o efeito produzido pela obra de arte e as intenções do criador. [...] Por que se haveria de imaginar que existe - ou que deveria haver - uma exata correspondência entre uma partitura, a sua produção e a sua percepção pelo auditor? O exemplo das obras contemporâneas é esclarecedor: não existem relações simples entre as estratégias de composição, as características imanentes da partitura - para não falar do próprio objeto sonoro - e os elementos retidos pelo auditor. [...] A percepção da música fundamenta-se na seleção, dentro do contínuo sonoro, de estímulos organizados em categorias e, em grande parte, com origem nos nossos hábitos perceptivos. [...] A intercompreensão musical, isto é, a correspondência mais exata possível entre produção e recepção, é apenas um caso limite, um tipo ideal jamais atingido. 61
Esta carência de unidade entre as intenções do compositor, a partitura e a percepção auditiva por parte do ouvinte constitui um dos principais problemas tematizados pelos compositores de Música Aleatória, visto que o inter-relacionamento entre esses três aspectos do processo de estruturação e percepção musicais é de natureza precária, evidenciando a atuação do acaso no âmbito da percepção musical (independente da notação ser determinada ou indeterminada).
Esses aspectos da composição musical citados por Molino, estimularam e influenciaram os compositores contemporâneos a considerarem de capital importância a execução em tempo real da Música Aleatória, pois cada partitura oferece as possibilidades notacionais de uma execução única e não repetível, devido ao não determinismo da notação e/ou das propostas de interpretação engendradas pelo compositor.
Desta forma, a problemática exposta por Jean Molino passa a ser integrada com intencionalidade no processo de composição e interpretação das partituras, delegando ao auditor uma certa parcela de responsabilidade no ato de relacionar os vários eventos sonoros que integram a partitura no momento de sua execução. Tal proposição se dá, talvez, pelo fato de, como se viu mais acima, o acaso poder ser identificado na estrutura mesma das freqüências sonoras, quando estas participam de complexos sonoros nos quais essas freqüências são dispostas em relação de interdependência.
Além disso, os compositores de Música Serial e de Elektronische Musick (música eletrônica "pura") se aperceberam que os processos composicionais por eles empregados - mesmo sendo extremamente determinísticos - não possibilitavam o controle total de estruturas sonoras complexas, nem tão pouco dos parâmetros musicais. Paul Griffiths descreve assim esse quadro:
O acaso não chegará a ser abolido da ramificada organização do serialismo integral [sem grifo no original], muito pelo contrário. A partir do momento em que uma parte tão importante da composição dependia da manipulação numérica , o compositor perdia o controle dos detalhes de sua criação. O problema era encontrar o meio termo entre uma organização serial tão completamente determinada que a escolha do compositor se visse alienada, de um lado, e, de outro, a livre imaginação, que facilmente poderia levar à incoerência.
[...] Os compositores de música eletrônica pura também haviam percebido que seu controle jamais seria completo quanto desejavam [sem grifo no original] [...] Os sons mais complexos nunca poderiam ser definidos com precisão em seus elementos constituintes [sem grifo no original], permanecendo sempre zonas de incerteza [sem grifo no original] nas quais só seria possível fixar as características do som em termos de probabilidades [sem grifo no original]. 62 De modo que, tanto o serialismo integral quanto a composição eletrônica, que haviam despertado tantas esperanças, revelam-se ambos permeáveis à influência do acaso. 63
Diante dos impasses da música serial integral, impasses esses que surgiram em função do fato de que "o próprio ato de tentar estabelecer o determinismo produz [e/ou faz emergir] o indeterminismo" 64, duas foram as principais propostas apresentadas pelos compositores no que se refere à utilização doa caso na música: em algumas composições é empregado parcial e controladamente e, em outras, participa da concepção total da obra.
No primeiro caso, a notação é caracteristicamente determinística, onde as notas, durações, o andamento e o timbre são totalmente pré-determinados pelo compositor: o acaso atua na escolha do intérprete em relação à ordenação dos vários módulos em que o compositor divide a peça - esse tipo de partitura, assim, incorpora a participação criativa parcial do intérprete ao determinismo da notação .
Na incorporação total do acaso na estruturação da peça, o compositor dá ao intérprete apenas indicações sumárias de suas intenções originais, o que possibilita a esse último uma ampla margem de participação criativa na interpretação da obra.
Mas muito embora o acaso tenha se firmado como opção estrutural das partituras apenas em meados do nosso século, sabe-se que o mesmo já era empregado nas cadências dos concertos do século XVIII, cujos andamentos não eram determinados pelos compositores (tendo em vista estimular a participação do intérprete na sua realização), assim como nos procedimentos composicionais de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) ao fazer uso do lançamento de dados para compor Würfelspiel (Jogo de dados).
Mas, como se verá mais adiante, a inclusão em larga escala do acaso na composição musical ocorre em meados de nosso século, representando um dos recursos mais significativos da produção musical contemporânea.


5.3.1.1 Física quântica e mística oriental

A efetiva inclusão do acaso na estética composicional contemporânea - muito embora tenha ocorrido como decorrência do desenvolvimento da linguagem musical - se dá pela aproximação a duas áreas do conhecimento humano, a saber: à física quântica e à mística oriental, na quais a indeterminação aparece como elemento fundamental.
Segundo a física quântica, a realidade última da matéria apresenta-se como sendo extremamente dinâmica, uma realidade na qual todos os eventos que nela ocorrem são regidos por leis probabilísticas.64 O físico Fritjof Capra descreve assim o universo das partículas atômicas:
As propriedades dos modelos básicos da matéria, as partículas subatômicas, só podem ser entendidas num contexto dinâmico, em termos de movimento, interação e transformação. [...] As partículas não são entidades isoladas, mas modelos de probabilidades [sem grifo no original]. [...] [No mundo subatômico] nunca podemos predizer quando e como tal fenômeno vai acontecer; apenas podemos predizer sua probabilidade. 65
A voz de Capra ressoa nas colocações da física e filósofa Danah Zohar e do físico Paul Davies:
[...] A realidade fundamental em si é essencialmente indeterminada, [...] não há um "algo"fixo e nítido subjacente a nossa existência diária que possa ser conhecido. Tudo na realidade é e continua sendo uma questão de probabilidade. 66
Temos agora que reconhecer que o microcosmo não é governado por leis deterministas que regulam com precisão o comportamento dos átomos e seus elementos componentes, mas pelo acaso e a indeterminação. 67
Desta forma, se o acaso e o indeterminismo apresentam-se como sendo inerentes à própria estrutura da matéria, fundamentando toda a realidade objetiva - e, portanto, em última instância a experienciação que dela temos -, a linguagem musical, sendo uma das expressões artísticas que mais apresentam qualificações e elementos que capacitam uma abstração efetiva de seu objeto de representação (ou seja, a matéria sonora), procura incorporar e expressar esta visão de mundo proporcionada pela física quântica.
Assim, os conceitos quânticos, devidamente aplicados à estética composicional da Música Aleatória, estimulam os compositores a não só utilizá-los na estruturação e elaboração das partituras, mas também solicitar aos intérpretes que interajam entre si, numa tentativa de dinamizar o discurso musical, fazendo com que o mesmo expresse todas as possibilidades aleatórias e não-causais que integram as indicações da partitura.
Além da física quântica, uma outra forte influência a emprego do acaso na música contemporânea, se faz representar pela assimilação da filosofia e da tradição mística e espiritual do oriente (sobretudo China, Índia e Japão), nas quais a complementaridade entre aspectos (aparentemente) antagônicos do mundo e da existência aparece como temática central de sua reflexão.
Dentre as filosofias orientais - caracteristicamente místicas e espirituais -, o Taoismo demonstra ter uma visão significativamente profunda da complementaridade. Nas palavras de Lao-Tsé (c. séc. VI e séc. V a.C.) e Chuang-Tzu (c. Séc. VI e séc. V a.C.):
Ser e não-Ser interdependem no crescimento;
difícil e fácil interdependem na consumação;
longo e curto interdependem na posição;
alto e baixo interdependem na posição;
os tons e a voz interdependem na harmonia;
dianteira e traseira interdependem na companhia. 68
[...] Aquele que quiser possuir o certo
Sem o errado
A ordem sem a desordem,
Não percebe os princípios
do céu e da terra.
Não percebe como as coisas se unem.
Pode um homem apegar-se apenas ao céu
E nada saber da terra?
São correlatos: conhecer um
É conhecer o outro.
Recusar um
É recusar a ambos. 69

Essas palavras tornam-se extremamente significativas, quando recordamos as tentativas dos compositores seriais e eletrônicos em elaborar um método que não fosse impermeável às influências da indeterminação e da aleatoriedade. A aproximação do pensamento oriental delega uma certa flexibilidade estrutural às partituras, fazendo com que os compositores se apercebam da impossibilidade de exclusão de elementos imprevisíveis no âmbito da composição musical. Se apercebem também que, uma vez aplicados os conceitos orientais à estruturação das partituras (conceitos esses que expressam a inevitabilidade da presença do imprevisível na realidade e na existência humana), a determinação e as relações causais que interdependem necessariamente da aleatoriedade e de processos não causais, poderiam ser mais eficazmente trabalhadas e redimensionadas, proporcionando uma melhor expressividade estética à obra musical.


5.3.1.2 O repertório

Dentre os compositores que se vêem envolvidos pelo pensamento oriental, Karlheinz Stockhausen (ao lado de John Cage), talvez seja o que mais significativamente traduz em suas composições essa visão de mundo, transformando suas partituras em verdadeiros roteiros cerimoniais e ritualísticos, nos quais a espontaneidade e envolvimento dos músicos consigo mesmos, com o ambiente, com os instrumentos, com os sons e com o público é solicitado como um componente fundamental para o desenvolvimento do discurso musical.
Numa de suas composições, Alphabet für Liège (1972), o compositor alemão exalta os poderes da vibração musical sobre objetos animados e inanimados, numa tentativa de demonstrar a força física e mística dos sons vocais, instrumentais e eletrônicos. O ouvinte encontra na execução desta peça um contexto musical relativamente exótico, se se levar em conta os concertos tradicionais, uma vez que na interpretação da peça uma cantora entoa mantras indianos para afetar diferentes partes de seu corpo, enquanto outros músicos mostram como os sons podem provocar padrões vibratórios em líquidos; ou ainda outros usando vibrações sonoras para alterar os movimentos da guelras de um peixe.
O caráter dessa exibição não consiste apenas em uma curiosidade intelectual, mas sim na exploração de aspectos ritualísticos que envolvem o tratamento do som solicitado por Stockhausen, cuja reflexão acerca das propriedades das vibrações sonoras é a seguinte:
Originalmente, na música sacra e na música tribal, a própria produção dos sons estava capacitada e qualificada a nos colocar em estado de transe e meditação, adoração e êxtase. Porém, isto desapareceu do mundo contemporâneo, e tudo o que resta agora é a atitude mais ou menos falsa do freqüentador de concertos ou alguém com seu rádio ou gravador que usa a música como uma tapeçaria sonora ou, na melhor das hipóteses, como um recurso para identificar uma emoção particular que a domina momentaneamente. Mas uma nova função dos sons, de certas constelações de sons compostas por pessoas que têm este conhecimento mais sutil de como as vibrações sonoras agem sobre os seres humanos, pode sugerir gravações tendo em vista propósitos muito particulares. 70
A proposta do uso de vibrações sonoras para a indução ao êxtase e para a expansão da consciência é uma idéia antiga amplamente reconhecida no oriente pelo uso de mantras e ragas (especialmente, por parte do povo indiano).
Na sociedade ocidental contemporânea, no entanto, a atenção para esse fato - no que ele se relaciona com a composição musical - se deu apenas a partir do surgimento dos meios eletrônicos de produção sonora, com os quais se pode demonstrar as propriedades psico-físicas do som, muito embora isso se realize com os meios científicos modernos e não por processos intuitivos como era ocaso das culturas antigas.
Paralelamente, o interesse pelo pensamento oriental leva Stockhausen não apenas a solicitar de seus intérpretes e auditores um maior envolvimento com as propriedades mais sutis das freqüências sonoras, mas também a sugerir uma ambientação que se ajuste aos sons que eventualmente serão produzidos por seus intérpretes na execução de seus instrumentos: sua obra Sterklang (1971), por exemplo, deve ser apresentada em um parque público "durante um verão cálido e tépido, sob um céu iluminado pelas estrelas e, de preferência, no período de lua cheia." 71
Paul Griffiths sintetiza da seguinte maneira as características dessa peça:
[Em Sterklang] a meditação sobre os primeiros trabalhos [de Stockhausen] para conjunto de Música Eletrônica Viva se entende à escala de uma celebração pública da harmonia, com cinco grupos afinados entre si por acordes específicos, cada um se comunicando com os demais por intermédio de signos musicais, e por pessoas que circulam entre eles carregando tochas incandescentes, pessoas estas que, esporadicamente, entoam nomes de constelações estelares. 72
Com essas características, a peça procura representar, segundo o compositor, a manifestação larga escala do "ritmo do universo", o que a aproxima significativamente dos rituais místicos dos povos orientais, sobretudo daqueles realizados pelos indianos.
Muito embora a aleatoriedade tenha sido amplamente empregada nas peças descritas anteriormente, é na chamada "música intuitiva" - tendo-se como exemplo de maior envergadura a peça Aus den Sieben Tagen (1968) - que Karlheinz Stockhausen emprega o acaso de forma mais radical e envolvente, representando, talvez, o apogeu dessa prática musical associada, porém, a elementos de determinação extremamente sutis e singulares - a partitura é integrada apenas por pequenos poemas que se destinam que se destinam a estimular o intérprete à produção da música intuitiva, que é assim definida pelo próprio compositor:
Por "música intuitiva"quero significar um esforço no sentido de que a produção musical seja realizada virtualmente sem obstáculos e sem restrições, e que se origine diretamente dos processos intuitivos. [...] A "orientação" dos músicos não é, enfatizo, puramente arbitrária ou a decorrência de uma imaginação musical negativa, mas uma concatenação articulada em um texto escrito que objetiva provocar a faculdade intuitiva de uma maneira definida. 73
A sutileza dos elementos determinísticos dessa modalidade de composição, a qual, como afirma Stockhausen é constituída por um "texto escrito que objetiva provocar a 'faculdade intuitiva' de uma maneira claramente definida", demonstra a intenção do compositor - através das apresentações em tempo real de música intuitiva - de não promover a livre improvisação, criticada e condenada por ele, mas sim uma contemplação musical coletiva que geralmente se integra ao repertório da Música Eletrônica Viva.
A partir dessas caracterizações das obras de Stockhausen, nos apercebemos da ênfase que o compositor atribui aos processos e procedimentos aleatórios e indeterminados, associados ao inter-relacionamento entre intérpretes, destes com os sons por eles produzidos e com o público, ao contexto das apresentações e, sobretudo, aos elementos determinísticos e causais.
Paul Griffiths descreve da seguinte maneira as principais características dessa parte da produção musical de Stockhausen, destacando a notação destinada a simbolizar as sonoridades dos instrumentos acústicos, a relação entre os músicos e os sons e os elementos determinísticos das partituras:
[As partituras de Stockhausen para conjunto de Música Eletrônica Viva não são "composições", mas sim "processos", [os quais] envolvem o amplo emprego e interpretação intuitiva, e onde as partes instrumentais contêm apenas sinais gerais que indicam como cada executante deve reagir em relação a si mesmo e aos demais músicos, e aos sons produzidos por eles. [...] Esta cena [musical] é flexível o bastante para permitir a cada músico usar a sua própria imaginação, porém suficientemente rígida e precisa para impor sentido aos símbolos musicais que caracterizam as partituras de Stockhausen, solicitando a mudança constante, a mediação entre extremos, e [a produção de ] simetrias sonoras dissimuladas.74
Todas essas inovações propostas por Stockhausen decorrem da necessidade de se executar ao vivo a Música Eletrônica que, conseqüentemente, passa a incorporar na estruturação de suas partituras procedimentos aleatórios e o acaso, não obstante incluir também elementos composicionais relativamente determinísticos e rigorosos.


5.3.1.3 Os paralelos entre a física quântica, o misticismo oriental e a Música Eletrônica Viva

Como se viu anteriormente, a aplicação desses elementos na elaboração da Música Eletrônica Viva encontra referências em ramos do conhecimento humano (física quântica e misticismo oriental) que demonstram o fato de que o universo macrocósmico - regido por leis causais e determinísticas, estrutura-se a partir de um microcosmo essencialmente dinâmico e indeterminado; ou seja, "o caos individual implica o determinismo coletivo," 75 no qual os eventos que nele ocorrem são orientados por leis probabilísticas não causais, significando que o paradoxo acaso-determinismo é inerente à própria natureza do Universo.
Muito apropriadamente a interdependência entre micro e macrocosmo é semelhantemente enfocada tanto por místicos quanto por físicos. O lama budista Anagarica Govinda afirma que
[O oriental] não crê num mundo externo independente, ou existindo separadamente, em cujas forças dinâmicas possa se inserir. O mundo externo e seu mundo interior são, para ele, apenas dois lados do mesmo tecido, no qual os fios de todas as forças e de todos os eventos, de todas as formas de consciência e de sues objetos, se acham entrelaçados numa rede inseparável de relações intermináveis e que se condicionam mutuamente. 76
Essas palavras encontram ressonância no pensamento dos físicos Manfred Eigen e Werner Heisenberg:
Designamos por "microcosmos" o mundo das partículas elementares, dos átomos e das moléculas. Nele se desenrolam todos os processos físicos elementares. O acaso tem sua origem na indeterminação desses processos elementares. Os processos individuais só caracterizam os fenômenos da matéria ao nível macrocóspico se forem em grande número. A estatística permite calcular médias a partir do comportamento aleatório dos processos elementares. Resulta, então, um comportamento determinista. No entanto, em certas condições especiais, pode suceder que um dos acontecimentos elementares venha a afetar o macrocosmo, refletindo-se assim ao nível macrocóspico a imprevisibilidade do "jogo de dados" microcóspico".77
O mundo apresenta-se [...] como um complicado tecido de eventos, no qual conexões de diferentes espécies se alteram, se sobrepõem ou se combinam, e desse modo determinam a contextura do todo. 78
Desta forma, a mística oriental e a ciência ocidental colocam três características das realidades micro e macrocósmica, consideradas fundamentais para a compreensão do paradoxo acaso-determinismo na Música Erudita Contemporânea, a saber:
A interdependência entre micro e macrocosmo gerada pelas relações entre acaso e determinismo, ,nas quais a indeterminação do mundo elementar afeta o comportamento determinista do macromundo (semelhantemente à imprevisibilidade e indeterminação dos complexos sonoros);
A realidade vista como uma teia de eventos indissociáveis e interdependentes que se afetam mutuamente, engendrando um complexo informacional (comparável ao contexto globalizante solicitado pela execução da Música Eletrônica Viva).
E, finalmente, a complementaridade entre instâncias (aparentemente) opostas (característica essa próxima à associação entre elementos determinísticos composicionais à elementos indeterminados).
Essas características, relacionadas à natureza última que regem a dinâmica dos universos macro e microcósmicos - preconizados tanto pela mística quanto pela ciência - influenciam não apenas o compositor Karlheinz Stockhausen - mas vários compositores na elaboração de partituras em que sugerem uma complexa tessitura de eventos sonoros que - semelhantemente a afirmação de Heinsenberg citada anteriormente - engendram "conexões de diferentes espécies se alteram, se sobrepõem ou se combinam, e desse modo determinam a contextura do todo". Os padrões gráficos apresentados na partitura não representam, portanto, possibilidades de acontecimentos sonoros isolados, mas possibilidades de interconexões entre esses acontecimentos.
Adaptando-se as palavras do físico Fritjof Capra79 para o campo da música contemporânea, poder-se-ia afirmar que...
...os vários discursos musicais considerados isoladamente são abstrações, e suas propriedades são definíveis e perceptíveis somente através de suas interações com outros sistemas sônicos. Cada evento sonoro individual é influenciado pelo universo sonoro total, e, embora não possamos descrever essa influência em detalhes,, reconhecemos uma certa ordem que pode ser expressa em termos de probabilidades: um determinado evento sonoro estimulando a criação de um outro evento sonoro; uma rede de inter-relações acústicas, eletrônicas e eletroacústicas.
Isso não significa que os eventos aconteçam de modo completamente arbitrário; significa apenas que não são devidos a causas locais. O comportamento de qualquer parte é determinado por suas conexões não locais com o todo; e como não se conhece precisamente essas conexões, os compositores se viram obrigados a substituir os paradigmas deterministas que regem a notação e a interpretação da música tradicional por um conceito mais amplo, que poderia ser denominado de "campo biopsicoacústico", onde as probabilidades dos eventos sonoros são determinadas pela dinâmica de todo o sistema (compositor, intérprete, ouvintes, meio ambiente, instrumentos musicais, aparelhos eletrônicos (o que transformaria o campo biopsicoacústico em um "campo biopsicoeletroacústico") e notação musical.
Enquanto na música tradicional, as propriedades e o comportamento das partes determinam o todo, o campo biopsicoeletroacústico parece nos sugerir a situação inversa: é o todo que determinaria o comportamento das partes.
A constatação de que a estrutura sonoro e a estrutura da mente são semelhantes não nos deve surpreender muito, uma vez que a consciência humana desempenha um papel fundamental nos processos de interpretação, audição e percepção dos eventos sonoro-músico-composicionais. Desta forma, os fenômenos sonoros "observados" só podem ser apreciados como correlações entre os vários processos perceptivos, e o fim dessa cadeia de processos reside sempre na consciência humana.
A característica principal de um campo biopsicoeletroacústico é que o sujeito é imprescindível não só para que as propriedades do evento sonoro sejam observadas e percebidas, mas também para ocasionar essas propriedades; pois a compreensão de um campo biopsicoeletroacústico como uma rede interligada de relações freqüênciais intrinsecamente dinâmica é fundamental para a sua interpretação e experienciação. As sua propriedades e potencialidades só podem ser apreendidas "num contexto dinâmico, em termos de movimento, interação e transformação"(Ver nota 65).
Outra observação a ser feita é o fato de que em um campo biopsicoeletroacústico, não se pode mais manter a nítida divisão entre estrutura sonora e estrutura da mente, entre fenômeno sonoro percebido e o auditor; nunca podemos falar da elaboração, interpretação e apreensão perceptiva de um campo biopsicoeletroacústico sem, ao mesmo tempo, falarmos de nos mesmos.
Essa busca de unidade entre todos os componentes constituintes que participam integrativamente do fato sonoro-musical (suas propriedades sonoro-musicais) parece somente passível de ser realizada e efetivada com a utilização e o emprego de recursos eletrônicos e eletroacústicos que - ao possibilitar a produção, o reprocessamento e a análise de vibrações freqüenciais sonoras - criam um campo biopsicoeletroacústico que capacita a integração desses componentes. 80
A interação entre músicos e meios eletroacústicos passa a ser, assim, de fundamental importância para a efetivação dessa proposta. Michel Chion e Guy Reibel consideram os meios eletroacústicos como sendo uma extensão artificial dos próprios músicos que os executam e operam, e o som como sendo capaz de unificar os paradoxos que são inerentes aos procedimentos musicais que integram elementos de indeterminação às partituras. Veja-se abaixo as suas considerações::
A força criadora de alguns músicos que se dedicam à produção de Música Eletrônica, fora o poder de trabalho e senso de composição que os caracteriza, reside na aparente ingenuidade que os faz interpretar literalmente o dispositivo técnico, imediatamente traduzido num sentido simbólico. Por exemplo, para eles, intermodular os sons, é intermodular as músicas e as idéias. As ondas hertzianas são as ondas cerebrais. O microfones de contato escuta bater o coração da matéria. Os amplificadores e os difusores de sons amplificam e difundem os pensamentos. Os fios elétricos que se ligam aos instrumentos são os nervos condutores de influxo cerebral. As vibrações sonoras se unificam às vibrações psíquicas.
Diante dessa maneira de se tomar de forma literal as analogias que sugerem todo o dispositivo técnico, e de ver dentro do contexto das máquinas a natureza do ser humano, remontamos imediatamente à esta outra ingenuidade: o profeta dos média, Marschall Macluhan.
Esses compositores representam o mutante descrito pelo sociólogo canadense, este homo maclunanus que faz corpos com as máquinas, extensões novas de seu sistema nervoso, aumentando infinitamente seus poderes de ação e comunicação. Isto é para dizer que os sons lhes interessam talvez menos por eles mesmos que pelos dispositivos utilizados para produzi-los. Cada obra é como um animal novo, uma nova criatura, produto da interação entre os instrumentos tradicionais e as máquinas; não importa se ela não é sempre admiravelmente bela - ela existe, ela pode caminhar, ela se manifesta. O som é antes de tudo mediador, veículo de uma "vontade de poder" inteiramente nova; de uma vontade de grandeza e de unidade que reconciliam os contrários. 81
A utilização de meios eletroacústicos na produção de uma parte do repertório de Música Erudita Contemporânea demonstra possibilitar, assim, o convívio mútuo de elementos extremamente antagônicos, tanto na estruturação das partituras quanto em seus procedimentos interpretativos, bem como nos processos de percepção e experienciação das vibrações sonoras.
Como se demonstrou no decorrer das análises desenvolvidas na apresentação da Música Eletrônica Viva - e ao se compreender e aceitar o fato de que na produção musical erudita contemporânea, o acaso e o determinismo não se excluem mutuamente; ou, segundo Stockhausen, "as palavras 'pré-determinado' e 'acaso' não são mais do que dois aspectos de uma só coisa" 82 - o fato sonoro-musical como um todo é essencialmente constituído pelo processo dinâmico entre ambos, processo este que permanentemente desloca as fronteiras perceptiva, expressiva e conceitual da Música. Esse deslocamento possibilita, por sua vez, o permanente desenvolvimento da linguagem musical - instaurando-lhe sentido e orientação estética -, na qual as interações entre os processos probabilísticos e os elementos determinísticos se metamorfoseiam e se transformam constantemente, solicitando de compositores, intérpretes e auditores uma ininterrupta dinamização de seus processos teóricos, empíricos e perceptivos.
Como adultos, podemos entender, e aceitar, por exemplo, o fenômeno de contrastes e opostos participarem de uma mesma relação, polaridades interligadas dinamicamente. A noção de que as sínteses - em graus cada vez mais elevados de universalidade - resultam da interdependência de componentes e, ainda, de que estas sínteses representam totalidades, que se tornam expressivas justamente porque são diferenciadas em sua estrutura interna, esta noção e de suma importância. Ela nos ajudará a explicar e exemplificar os diversos problemas de linguagem e de conteúdos artísticos.83
Os compositores de Música Eletrônica parecem ter trabalhado para por em evidência a relação entre instâncias (aparentemente) contrastantes e opostas - ou seja acaso e determinismo - que, contudo, se nos apresentam como sendo os principais constituintes do fato musical e de estruturas sonoras complexas, integrando-os às partituras, e fazendo com que os mesmos fundamentem a elaboração estrutural, teórica e prática de grande parte da produção musical contemporânea: a constatação, em termos musicais, de que
Não existe atualmente nenhum campo - ciências físicas, humanas, criação artística, instituições jurídicas, vida econômica, debates políticos -, cujos problemas não pareçam referir-se às noções antagonistas da ordem e da desordem ou àquelas, mais flexíveis mas não menos antinômicas, do equilíbrio e do desequilíbrio. Tudo nos leva a crer que estas noções são indispensáveis para interpretar o conjunto das realidades que se apresentam em nós e à nossa volta. 84
Em termos estético-musicais, as fronteiras entre ordem e desordem, equilíbrio e desequilíbrio, acaso e determinismo não representam um limite à produção e à organização dos sons, mas sim um estímulo à criação de novos modelos estéticos de composição - associados ou não à disciplinas extramusicais -, bem como à formulação de uma nova visão de mundo que seria engendrada mediante a vivência da própria produção musical contemporânea..

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NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

56 Karlheinz Stockhausen cit. por Paul GRIFFITHS, 1986, p. 164.
57 Ver citação 2 à página 75 e, sobretudo, a citação 13, p. 87.
58 ZOHAR, s.d., p. 28.
59 Neils Bohr cit. por Fritjof CAPRA, 1985, p. 22.
60 J. L. Oppenheimer cit. por Fritjof CAPRA, 1985, p. 22.
61 MOLINO, s.d., p. 134 e 136.
62 Comparar essa colocação com a citação 66 (acerca do fundamento da realidade) e com a citação 77 (sobre o micro-cosmo e o macro-cosmo).
63 GRIFFITHS, 1986, p. 171.
64 Ver notadamente da citação de Griffiths (63) sobre a colocação do autor sobre a fixação probabilística das características do som.
65 CAPRA, 1988, p. 81-2. Os apontamentos de Davies acerca do mundo subatômico podem ser perfeitamente aplicados à micro-estrutura musical aleatória: colocando-se o termo "musical" à frente da palavra micromundo , a afirmação do autor pode ser perfeitamente considerada como uma descrição da estrutura da composição aleatória.
66 ZOHAR, s.d., p. 27.
67 DAVIES, 1988, p. 73.
68 Lao-Tzé, cit. por Ernesto BONO,1982, p. 33.
69 Chuang-Tzu, cit. por Ernesto BONO,1982, p. 116.
70 GRIFFITHS, 1979, p. 90.
71 Karlheinz Stockhausen cit. por Paul GRIFFITHS, 1979, p. 82.
72 GRIFFITHS, 1979, p. 82.
73 Karlheinz Stockhausen cit. por Paul GRIFFITHS, 1979, p. 80.
74 GRIFFITHS, 1979, p. 77-8.
75 DAVIES, 1988, p. 135.
76 Lama Anagarika Govinda cit. por Fritjof CAPRA,1985, p. 112.
77 EIGEN, M., WINKLER, R., 1989, p. 45.
78 Werner Heisenberg cit. por Fritjof CAPRA, 1988, p. 75.
79 CAPRA, 1985.
80 Obviamente não se descarta a possibilidade de certas modalidades musicais - sobretudo as tradicionais - em produzir efeitos semelhantes ao campo biopsicoeletroacústico, ou que tenha propriedades também semelhantes. Porém, discute-se aqui a hipótese de uma música composta na contemporaneidade por homens e mulheres histórica e culturalmente situados, devedores do momento civilizacional ao qual pertencem.
81 Michel CHION e Guy REIBEL, 1976, p. 156.
82 Karlheinz Stockhausen cit. por Montsserrat ALBERT, 1979, p. 19.
83 OSTROWER, 1990, p. 7.
84 (?)


5 MÚSICA ELETRÔNICA E ALEATORIEDADE: AS FRONTEIRAS ENTRE O ACASO E O DETERMINISMO NA ESTÉTICA COMPOSICIONAL DA MÚSICA ERUDITA CONTEMPORÂNEA

5.1 A VERTENTE FRANCESA
5.2 A VERTENTE ALEMÃ
5.3.1 O acaso e o determinismo na Música Eletrônica Viva e na Música Aleatória por influência da física quântica e da mística oriental
5.3.1.1 Física quântica e mística oriental
5.3.1.2 O repertório
5.3.1.3 Os paralelos entre a Física quântica, o misticismo oriental e a Música Eletrônica Viva


O paradoxo é simplesmente a maneira como o não dualismo encara o mundo mental
Ken Wilber

O que há de particular em relação a uma fronteira
é que, independente de quão complexa e rarefeita ela seja, na realidade,
ela não demarca mais que um dentro vs. fora. Por exemplo, podemos desenhar
a forma muito simples de uma linha limite, tal como um círculo,
e constatar que ele revela um interior vs. um exterior.
Mas observe que os opostos interior vs. exterior não existirão em si
até o momento em que traçamos a fronteira do círculo.
Em outras palavras, é a própria fronteira que criou um par de opostos.
Em resumo, traçar fronteiras é criar opostos.
Ken Wilber

O último segredo metafísico, para exprimi-lo de uma maneira simples,
é que não existem fronteiras no universo. As fronteiras são ilusões, produtos não da
realidade, mas da maneira pela qual traçamos mapas e arrumamos a realidade.
Ken Wilber

Quanto maior a multidão e maior a anarquia aparente, mais perfeita é sua variação.
É a lei suprema da "Desrazão". Em qualquer lugar onde uma grande amostra de elementos caóticos seja colhida e escalonada segundo a sua magnitude,
uma forma de regularidade insuspeitada e das mais belas prova ter estado latente o tempo todo.
Os pontos mais altos da fileira escalonada formam uma curva harmoniosa de proporções invariáveis; e cada elemento, ao ser posicionado, encontra como que um nicho pré-determinado, cuidadosamente adaptado para contê-lo.
Francis Galton

A beleza de uma composição é especificamente musical, isto é, inerente aos sons, sem relação com o círculo de pensamentos estranhos, extramusicais.
Eduard Hanslick

Jamais um homem, por excepcional que seja, poderá substituir uma máquina eletrônica.
Pierre Barbaud

Nunca uma máquina, por mais perfeita que seja, substituíra um homem genial.
André Jolivet

Em música, tudo é permitido.
Paul Valery


A utilização de recursos eletrônicos na composição musical ocasionou o surgimento de três principais tendências: a Musique Concrète, que faz uso de sons naturais reprocessados através de aparelhos eletrônicos; a Elektronische Musik (ou "música eletrônica pura"), cujos sons são sintetizados exclusivamente por meios eletrônicos, e organizados segundo o método do serialismo integral; e uma terceira tendência, a Música Eletroacústica, na qual os sons instrumentais passam a integrar esse novo quadro de possibilidades a partir da associação dos mesmos com os sons reprocessados da musique Concrète e com os sons sintetizados da Elektronische Musik.
Essa terceira tendência, a Música Eletroacústica, redunda no surgimento de uma quarta categoria de expressão musical que associa as sonoridades acústicas reprocessadas por aparelhos eletrônicos e as sonoridades eletronicamente sintetizadas aos sons instrumentais amplificados e reprocessados eletronicamente (muito embora esses sons instrumentais possam ser apresentados sem os recursos de amplificação e reprocessamento). Como se verá mais adiante, é na execução da Música Eletroacústica em tempo real, ou Música Eletrônica Viva - a terminologia que caracteriza a quarta categoria em questão - que o acaso e o determinismo (na notação e\ou na execução musicais) surgem e passam a ser empregados simultaneamente, representando a expressão mais significativa dos processos composicionais da música erudita contemporânea que possibilita o aparecimento de ambos.
No entanto, é na produção da Elektronische Musik que surgem originalmente os paradoxos mais evidentes relacionados a procedimentos composicionais que suscitam a necessidade de se associar o extremo rigor do método serial - do qual se valia inicialmente os compositores na organização dos sons eletrônicos por eles produzidos - ao acaso e ao determinismo.
A partir dos próximos itens deste capítulo se verá como, a partir do surgimento da musique Concrète, as pesquisas em torno da criação de novas sonoridades, de novas formas de organização sonora, da aplicação do serialismo às composições realizadas como os recursos de aparelhos eletrônicos, dentre outras, concorrem para a aproximação do acaso ao determinismo. Esses dois procedimentos, muito embora aparentem se excluir mutuamente, encontram-se - no contexto deste período da Música Erudita Contemporânea - intrinsecamente relacionados, uma vez que a aleatoriedade apresenta-se implícita na estruturação composicional da Elektronische Musik, não obstante a concisão formal e estrutural do método de composição musical empregado sua organização sonora.


5.1 A VERTENTE FRANCESA: MUSIQUE CONCRÈTE

O gravador de fita magnética, muito embora não seja considerado um instrumento musical na acepção completa do termo, veio a ser o recurso técnico que tornou a Música Eletrônica passível de ser realizada.
Apesar de ter sido inventado em 1935, o seu uso passou a ser mais generalizado durante a década de 1950. Porém, já no ano de 1948, o músico e pesquisador francês Pierre Schaeffer (1910-1995) produz alguns estudos que passam a ser denominados pela expressão musique Concrète, utilizando gravações gramofônicas de efeitos diversos. Estes sons eram manipulados pela alteração da velocidade, superposição de timbres em vários canais do gravador, corte e remontagem de fita magnética (tendo em vista fixar a duração dos sons), dentre outros procedimentos.
A estréia dessas obras musicais em sala de concerto se deu no mesmo ano de sua criação e, devido aos resultados altamente significativos, e o conseqüente interesse por parte das autoridades francesas, Schaeffer recebe os auspícios da O.R.T.F. (Ofício da Rádio e Televisão Francesa). Conseqüentemente, o compositor e sua equipe passam a ter à sua disposição maiores facilidades técnicas oferecidas pelo estúdio da entidade, incluindo o uso de gravadores de fita magnética e demais aparelhos eletrônicos necessários à produção e ao desenvolvimento dessa nova tendência musical.
A primeira composição genuinamente concreta, Symphonie pour un homme seul (1949-50), cuja estréia se deu em 1950, foi realizada em colaboração com Pierre Henry, à época um jovem músico francês que se vê extremamente estimulado com as novas possibilidades desse novo meio de produção sonora e musical. (essa primeira composição foi antecedida por um primeiro estudo, o Étude aux chemins de fer, criado em maio de 1948 partir de gravações de locomotivas em movimento). No ano seguinte, o Groupe de musique Concrète - que, a partir de 1958, passa a ser denominado Groupe de Recherche Musicales (GRM) - se estabelece definitivamente naquela estação de rádio.
A musique Concrète tem seus antecedentes na música do italiano Luigi Russolo (1885-1947) e dos demais futuristas. Mas, enquanto o Intonarumori futurista apenas simulava os ruídos da sociedade moderna, os compositores de musique Concrète estavam capacitados a usar sons atuais gravados diretamente da fonte, os quais podiam ser reprocessados e organizados na ambientação tranquila e acondicionada de um estúdio.
Esse trabalho de reprocessamento e organização sonora produz os primeiros exemplos de uma tendência ou gênero musical e uma técnica de composição inteiramente novas, uma música criada em sua forma definitiva pelo compositor sem o processo de se escrever uma partitura que posteriormente seria interpretada e executada por outros músicos. Essa mecanização dos processos de composição - que tem por conseqüência a fixação imutável dos sons na fita magnética - e a exclusão do elemento humano como intérprete, paradoxalmente não desqualifica a obra como um produto artístico criado, obviamente, por um ser humano, pois, como muito oportunamente assinala Boris de Schloezer e Marina Scriabine, "manejar os aparelhos eletro-acústicos não desumaniza o músico, não mecaniza a música, antes humaniza os aparelhos [sem grifo no original]." 49
No que se refere à possibilidade de fixação definitiva e determinada do material sonoro utilizado na musique Concrète, pode-se, paradoxalmente, reconhecer em seus procedimentos composicionais elementos de indeterminação e aleatoriedade que lhes são intrínsecos. Tais elementos são assim descritos pelo compositor Luc Ferrari:
Convém compreender que os corpos sonoros não dão nada daquilo que deles se espera. O microfone capta o que há de mais imprevisível [sem grifo no original]. Muitas vezes nos perdemos, e recomeçamos então, até obtermos um objeto sonoro interessante. E, para nos desculparmos, dizemos ser ele, sem tirar nem pôr, o que incondicionalmente desejáramos. Exagero um pouco para me fazer compreender; e, neste ponto, posso dizer que se apenas gravássemos o que pretendemos - inclusive quando procuramos um resultado muito complexo -, só obteríamos coisas muito pobres. Com efeito, o desejo é bem mais banal do que a realidade, o sonho bem mais pobre do que a matéria. Uma chapa metálica, um abat-jour, um ventilador, qualquer dessas coisas, dá resultados sonoros imprevistos."50
Essa imprevisibilidade do registro dos sons, que faz parte do processo de captação das fontes sonoras (e que serão posteriormente trabalhadas para a composição da Musique Concrète), não advém da ineficiência dos aparelhos e\ou alguma "deformação" das fontes sonoras, ou ainda do despreparo dos músicos na realização de tal tarefa, mas sim pelo fato de que os próprios sons naturais são essencialmente desprovidos de precisão micro-estrutural, o que torna o ato de registrá-los impreciso e indeterminado. Tem-se, dessa forma, duas modalidades de indeterminação: a da micro-estrutura dos sons propriamente ditos; e aquela da captação e registro desses sons.
Verifica-se, assim, que já na composição da Musique Concrète - na qual se faz o uso generalizado de aparelhos eletrônicos que, supostamente, teriam um alto grau de precisão e rigorosidade no registro e reprocessamento de sons - a aleatoriedade entra como um fator altamente significativo, que deve ser levado em conta pelos compositores que se propõem a produzir obras musicais a partir da aplicação dessa técnica composicional.
Essa característica , contudo, não retira o mérito da Musique Concrète de ter inaugurado - do ponto de vista do desenvolvimento da linguagem musical - o uso e a aplicação de recursos eletrônicos nos processos de composição. Por outro lado, o músico francês Pierre Boulez não vê na Musique Concrète nada além da utilização de recursos técnicos carentes de sistematização metodológica composicional.
A Musique Concrète beneficiou-se, desde o princípio, duma curiosidade por vezes justificada. O interesse puramente técnico que então despertava, degradou-se pouco a pouco, por determinados motivos, e pode ter-se a certeza de que o seu papel não se reveste de importância alguma e de que as obras por ela suscitadas não são para fixar... Possuem apenas os respectivos títulos para se apresentarem à posteridade; desprovidas de qualquer intenção criadora, limitam-se a ser pouco engenhosas ou pouco variadas montagens, contando sempre com os mesmos efeitos, onde a locomotiva e a eletricidade fazem as vedetas: nada é função de um método algo coerente." 51
Essa lacuna no método composicional da Musique Concrète, apontada por Boulez, será preenchida com o advento do método composicional aplicado à elaboração da Elektronische Musik, a qual aplicará os princípios do serialismo integral ou total (uma radicalização do serialismo weberiano) na organização de sonoridades criadas exclusivamente a partir de recursos eletrônicos. Mas mesmo a exclusividade de tais recursos - que possibilitam uma relativa coerência da organização das freqüências sonoras - não eliminou a presença do acaso na estrutura da obra; o compositor passa a reconhecer que, mesmo tendo à sua disposição recursos técnicos apropriados (e relativamente sofisticados para a época) e um método composicional adequado, certos aspectos da obra escapam ao seu domínio: é na música puramente eletrônica (na composição eletrônica, portanto) que se torna evidente o fato de que, mesmo em estruturas musicais rigidamente organizadas, encontram-se elementos de indeterminação e aleatoriedade.


5.2 A VERTENTE ALEMÃ: ELEKTRONISCHE MUSIK

Alguns anos após a instalação do estúdio Musique Concrète em Paris, mais exatamente em 1952, um estúdio eletrônico é montado na Nordestdeutcher Rundfunk, na cidade de Koln (Colônia), Alemanha, no qual o desenvolvimento de uma diferente utilização dos recursos de um estúdio viria a se realizar.
A principal base teórica utilizada neste tipo de composição é o serialismo integral. Um grupo de jovens compositores, do qual se destacam Karlheinz Stockhausen e Pierre Boulez (influenciados pela música de Webern, Messiaen e pelos ensinamentos de Herbert Heimert, o primeiro diretor do estúdio), desenvolve um método composicional onde todos os parâmetros musicais têm seus valores fixados eletronicamente, tarefa esta que apenas poderia ser levada a termo com o uso de sons que fossem gerados por aparelhos eletrônicos, organizados segundo o método serial e registrados em fita magnética: essa música passou a ser conhecida como Elektronische Musik ou música eletrônica pura, denominação que a diferenciava da tendência francesa.
A aplicação do método serial à composição eletrônica é assim descrita por Claude Samuel:
Graças à linguagem serial, o novo material (sonoro da Elektronische Musik) adquire uma forma e, inversamente, a forma serial encontra a sua realização nesta produção sonora que se presta às mais rigorosas e precisas organizações. Em suma, o criador termina a sua obra e satisfaz plenamente o desejo de coerência, de unidade, estabelecendo um laço entre a forma da obra e o material utilizado, entre macro-estrutura e micro-estrutura." 52
Destaca-se nessa citação o fato do autor evidenciar que tanto a Elektronische Musik quanto o método serial se beneficiam mutuamente ao serem utilizados em conjunto; além, é claro, de seu otimismo em relação às possibilidades desse benefício mútuo (como se verá mais adiante, esse otimismo estará fadado a ceder o seu lugar a uma certa decepção em relação ao método composicional baseado na aproximação do serialismo às sonoridades eletrônicas).
Em outra passagem de sua obra, Claude Samuel considera a produção musical eletrônica da vertente alemã como sendo um marco de extrema significação no desenvolvimento da linguagem musical, destacando a importância da criação de novos timbres: "a música eletrônica pura marca o fim de uma série de correntes e, do mesmo modo, resolve uma série de problemas. Não só se orienta ousadamente para a descoberta de um novo som, como renova o material sonoro de uma época em que o aumento do efetivo instrumental é umas das constantes preocupações dos criadores." 53
A grande variedade de timbres produzidos pelos meios eletrônicos será organizada, no contexto da produção da Elektronische Musik, a partir da idéia weberiana de melodia de timbres, na qual cada instrumento produz suas sonoridades obedecendo às diretrizes do método serial.
Todos esses novos recursos são amplamente utilizados por Stockhausen, um dos primeiros compositores a compor obras significativas de música eletrônica pura. Logo após a inauguração do estúdio de Colônia, inicia o compositor a elaboração de estudos, nos quais todos os sons são produzidos e modificados exclusivamente por recursos eletrônicos, uma tentativa de obtenção de timbres a partir da superposição de ondas senoidais, da fixação de alturas, da determinação de intensidades relativas às freqüências desejadas, assim como das séries harmônicas que integram essas freqüências sonoras.
Porém, o controle timbrístico não cumpriu as expectativas de Stockhausen, que não obteve os resultados esperados. As sonoridades puras não se cristalizavam, resultando em um conjunto sonoro musicalmente inexpressivo e destituído das ricas nuances, variações e inflexões que caracterizam os sons instrumentais. Além disso, a rítmica aplicada às freqüências eram definitivamente predeterminadas, o que contribuía ainda mais para a falta de expressividade musical das obras.
Diante desses problemas, Stockhausen desenvolve novas formas de síntese sonora (tomando por base as experiências anteriores), que vêm, até certo ponto, solucionar os problemas descritos no parágrafo anterior. Porém reconhece a impossibilidade de determinar precisa e rigorosamente a totalidade dos aspectos e constituintes do fato sonoro, constatando que "na música mais severa, aparentemente 'pensada até o fim' e 'precisa' em princípio nos seus mínimos pormenores, sobrevêm coisas sobre as quais não temos qualquer poder, que escapam ao pensamento ordenador, como a inspiração súbita, como o desejo, em geral, de fazer música." 54
Assim, o compositor alemão se dá conta de que um pensamento musical sistemático e rigoroso, mesmo sendo sustentado pela utilização de recursos eletrônicos, não está capacitado a abarcar a globalidade dos componentes que constituem o fato sonoro. Percebe também que os processos composicionais da Música Eletrônica Pura se apresentam com uma relativa deficiência operacional no que diz respeito à tentativa de utilizar ordenadamente esses recursos na organização musical total das sonoridades que integram uma determinada composição.
A Música Eletrônica em sua vertente alemã, muito embora tenha aberto inúmeras possibilidades em termos de expansão do efetivo do material sonoro, deixou os compositores diante de dois impasses fundamentais: primeiro, no que se refere à constatação de que há elementos imprevisíveis mesmo em métodos composicionais de extremo rigor metodológico; segundo, no que tange à utilização da imensa variedade dos aspectos composicionais que os recursos eletrônicos colocavam à sua disposição. No dizer de Herbert Eimert:

Os meios eletrônicos não permitem "fazer música", no sentido habitual da expressão. Quando instrumentos eletrônicos o tentam representam apenas uma música de substituição... A nova produção sonora exige antes novas idéias criativas de composição, e estas só podem provir do próprio som: da "matéria sonora"... Hoje, [o compositor] já não tem que tratar com setenta ou oitenta sons, com seis ou sete intensidades entre pp e ff, quartos ou oitavas de tom, mas sim com freqüências elétricas de cerca de cinquenta a quinze mil vibrações por segundo, com mais de quarenta intensidades exatamente medidas e com um imensidade de durações (centímetros de fita) que saem do quadro habitual da notação."55
No entanto, o desafio de se criar nova formas de se pensar o fato musical, tendo-se em vista uma utilização mais adequada das novas possibilidades sonoras e musicais advindas da eletrônica e do paradoxo entre acaso e determinismo, longe de desestimular os compositores, faz com que os mesmos se empenhem cada vez mais na tentativa, não de dissimulá-los mas, ao contrário, de incorporá-los aos próprios procedimentos composicionais e nas formas de execução musical. Surge também, dentre outras perspectivas, a sugestão de novas posturas perceptivas relacionadas à audição musical e aos locais onde as apresentações de Música Eletrônica seriam eventualmente realizadas: identificam-se essas proposições na execução da Música Eletrônica Viva e na Música Aleatória, que serão descritas no próximo item.
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NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

49 Boris de Schloezer e Marina Scriabine cit. por Claude SAMUEL, 1964, p. 502.
50 Luc Ferrari cit. por Claude SAMUEL, p. 525.
51Pierre Boulez cit. por Claude Samuel, p. 525.
52 SAMUEL, p. 504.
53 SAMUEL, p. 503.
54 Karlheinz Stockhausen cit. por Claude SAMUEL, p. 180.
55 Herbert Eimert cit. por Claude SAMUEL, p. 523.